segunda-feira, 23 de outubro de 2006

O Cara

O cara “se achava”. Desde pequeno se sentia mais importante do que realmente era. A realidade lhe mostrava o contrário minuto a minuto, mas ele não era muito bom nisso de realidade. Era do tipo otimista demais naquilo que se referia à sua própria pessoa. Pensava que todos gostavam DEMAIS dele, por isso sempre tinha um ar garboso, imponente, o que o deixava mais ridículo ainda. Adorava a frase “Se a vida lhe oferece um limão, faça dele uma limonada”. E ria. Ria, não. Gargalhava. Achava graça em tudo o que ele mesmo falava. Todos sempre riam dele, mas ele julgava que riam com ele, em razão dele. Era prepotente na realidade; julgava ter uma superioridade moral em relação aos demais, por isso desprezava a todos sutilmente De vez em quando, cometia pequenos delitos, nunca descobertos: surrupiava dinheiro da carteira dos amigos, apoderava-se de pequenos objetos alheios sorrateiramente, levava para si, como suvenir, cinzeiros de hotel, porta-guardanapos de restaurantes, miudezas vendidas em bazares, enfim, julgava-se sempre no direito de se apossar daquilo que não lhe pertencia sem culpa alguma no coração. Aliás, fazia isso e ria. Ria muito, afinal ele era “o cara”; os demais nada representavam para ele; eram apenas “pessoas” sem importância; ninguém era importante em sua vida, a não ser ele próprio.

No esporte, pretendia ser jogador de futebol de salão. Chegou a ser o terceiro goleiro do time infanto-juvenil do bairro. Nos dois anos em que participou do time, por duas vezes chegou a ficar no banco de reservas. Na primeira vez, durante semanas contou a todos sua experiência de estar sentado lá, ajudando o time a disputar o campeonato; acreditava que a sua simples presença estimulava os jogadores do time, que, aliás, nunca conseguiu classificação entre os oito melhores; nem entre os dez. Na segunda vez, durante semanas fez a mesma coisa: contou, contou, contou a todos a mesma história. Em tempo: as duas partidas seu time perdeu... de goleada, mas, convenhamos, a culpa não foi dele; afinal, ele nem jogou! Mas todos sabiam que, se jogasse nada conseguiria, pois era um goleiro medíocre, mas ele pensava que, se lá dentro da quadra estivesse, seu time teria melhor sorte. Tentava, porém, corromper os jogadores adversários incansavelmente, com aqueles objetos afanados, para que seu time conseguisse ao menos uma vitória. Em um jogo foi acusado pelo árbitro de tentar suborná-lo, oferecendo-lhe um apito de prata, que ele havia subtraído do pai de um amigo, que era professor de Educação Física. Ele alegou que encontrara o apito no vestiário e pensara que pertencesse ao juiz, por isso pensava estar devolvendo o objeto ao seu legítimo dono. De maneira alguma pensara em suborno. Era esperto desde menino.

Aos doze anos era coroinha da igreja Nossa Senhora das Almas; ajudava na missa das seis horas da manhã aos domingos. Horário que ninguém queria por motivos óbvios, mas ele; ah, ele! Lá estava ele todos os domingos, alegre e faceiro, às seis e quinze da manhã. Pronto para ajudar o padre em tudo o que fosse necessário. Pelo menos era isso que o padre pensava, mas sua intenção era outra. Chegava saltitante; tão feliz que até irritava o padre, pois falava demais; dava palpites errados nas horas erradas. Fazia perguntas inconvenientes a todos. Queria saber tudo sobre a missa, sobre o padre, sobre a igreja, sobre os santos, sobre o Papa, sobre os salmos, sobre tudo. E o pessoal da igreja não suportava mais tantas perguntas, além dos elogios a si próprio. Durante três anos foi o coroinha da missa das seis. Todos os velhinhos e velhinhas já sabiam quem ele era. Até gostavam dele. Ninguém jamais havia badalado o sino com tanta energia. E ria. Ria muito cada vez que badalava aqueles sinos, pois sua verdadeira intenção para fazer aquilo era chamar a atenção sobre si; era ser conhecido e ganhar a confiança das pessoas. Depois das missas, acompanhava algumas senhoras até sua casa e sempre furtava alguma coisa delas; jamais suspeitaram dele, afinal era tão atencioso, tão bonzinho, tão camarada. Até da sacristia ele levou algumas “lembranças”. Nunca foi, porém, acusado de nada; nenhuma suspeita pairava sobre ele. Era muito esperto. Chegava a acusar alguns colegas com tanta convicção que os adultos acreditavam nele e puniam o pobre coitado do inocente.

Aos quinze anos partiu para a política. Era do conselho consultivo do Grêmio Estudantil. Ninguém da diretoria queria que ele entrasse para a chapa, mas ele insistiu tanto, falou tanto, apresentou tantos argumentos, que acabaram inventando o tal do conselho consultivo. Assim ele sossegaria. Mas não sossegou. Era o mais assíduo. Nunca faltou a uma reunião sequer da diretoria, apesar de não fazer parte da diretoria. Todos diziam a ele que não era necessária sua presença, que ele não precisava se preocupar, que, quando houvesse necessidade, ele seria chamado. Mas, o quê! Lá estava ele sempre. Os diretores deixaram-no participar. Quem sabe ele não desistiria. Nunca desistiu! E ria. Ria muito em todas as reuniões. E contava muitas piadas. Todas sem graça. Mas ria de suas próprias palavras. Apresentava projetos todas as semanas; um mais desarrazoado que o outro. Alguns, porém, sofrendo reajustes, até que podiam ser realizados. Seus companheiros passaram a achá-lo inteligente e a admirá-lo por tanta pertinácia e dedicação. Nas eleições seguintes, já era o presidente do Grêmio (dizem que foram os primeiros votos que ele comprou na vida). Durante toda a época em que fez o Ensino Médio esteve à frente das agremiações estudantis.

Na faculdade também conseguiu se eleger o representante dos alunos. Aí ele começou a se revelar: dirigiu o Grêmio com mão de ferro: perseguia os que se opunham a ele; aliou-se aos bandidinhos da faculdade, e transformaram a agremiação em um reduto reservado a eles. Transformaram-se em uma pequena quadrilha; roubavam as provas e as vendiam aos demais alunos, organizavam colas coletivas para as provas que não conseguiam roubar, ameaçavam veladamente professores supostamente exigentes e disciplinadores, exigiam propina dos novos estudantes, arrombavam carros no estacionamento da faculdade, roubavam tudo o que encontravam e, depois, vendiam aos próprios estudantes, estupravam garotas e alguns garotos também, enfim, “o cara” transfigurou-se. Virou bandido. Continuava, porém, dissimulado: quem o via não imaginava ser ele o líder da bandidagem. Na única vez em que foi interrogado pela polícia sobre os acontecimentos na faculdade, mostrou-se tão seguro e tranqüilo que convenceu os policiais de sua inocência e ingenuidade. Todos se convenceram de que ele nada sabia sobre tudo aquilo. Aliás, até vendeu aos policiais uns objetos roubados. Era, realmente, “o cara”.
Hoje, está milionário. Formou-se em Direito e advogou por muitos bandidos de ‘colarinho branco’. Enfronhou-se na política. Conhece os “podres” de muitos políticos, por isso os mantém sob tutela. Continua usando as mesmas táticas da época da faculdade, agora mais sofisticadas e mais violentas. Já ocorreram mortes suspeitas em seu meio, mas ele continua “limpo”: nada sabe, nada fez. Continua esperto. É amigo íntimo do Presidente da República, um dos antigos líderes da quadrilha, mas os dois nunca são vistos juntos para não levantar suspeitas. É um dos mais cotados para assumir a presidência do partido que sustenta a Presidência da República. Nos meios político-bandidos, o partido de que faz parte e que sustenta a Presidência da República, é chamado de Partido das Tramóias ou Partido dos Trambiques. Continua esperto e insuspeito “o cara”.

14 comentários:

Anônimo disse...

Olá...

Gostaria que esclarecessem uma dúvida minha, se possivel.

A frase:

Me dá na minha mão!
Está correta?
Pode ser utilizado o me e o minha na mesma frase?

Aguardo a resposta de vocês, o mais breve possível.
Obrigado pela atenção dispensada.

Thamiris Lemes

Dílson Catarino disse...

O pronome me só não pode ser usado na mesma frase de um pronome possessivo quando possuir valor possessivo. Por exemplo: "Furtaram-me até os sapatos", cujo valor é o mesmo de "Furtaram até os meus sapatos".
Na frase apresentada, o me não tem valor possessivo. Ele funciona como complemento do verbo dar (Quem dá, dá algo a alguém). Não há erro, portanto, no uso de me e minha juntos em tal frase.
Em tempo: a inadequação da frase está no uso do pronome me no início de frase. Não se inicia frase com pronome oblíquo átono (me, te, se, o, a, lhe, nos, vos, os, as, lhes).

Anônimo disse...

Professor,

O que está correto?

"Faltam ...dias para o Natal"

"Falta... dias para o Natal"

meu email é: amanda@lumendesign.com.br

Obrigada!

Anônimo disse...

sobre o texto "o cara"

Há pessoas que procuram amigos apenas para ufanar-se, no fragmento citado anteriormente o cidadão além de vangloriar-se demasiadamente, também aglutinou uma quadrilha na faculdade, o mesmo ainda participa de forma irrefutável das reuniões do presidente...
Que país é este, onde as desigualdades sociais aumentam e o povo pede bis.
Será que um dia saberemos dissuadir um cidadão "ilibado"
do ladrão.

Anônimo disse...

era para ter um sinal de interrogação (?) na frase anterior, minhas desculpas aos leitores e ao professor.

Anônimo disse...

Saudações professor,

Ora, criei um link do seu sítio "gramatica on-line" e, hoje dando uma vasculhada assunto, vi o seu blog. Gostei realmente do seu texto, é bem deflagrador das tipicidades humanas. Voltarei para ler mais, sempre que puder.
Aproveito e convido-o a ler as crônicas do Joel, postadas no blog http://cronicasdojoel.blogspot.com , não prometo que encontrará lá a riqueza da perfeição gramatica, mas ao menos a mim e a outros que me dizem, há bons motivos para ler.

Joel Rogerio - ES

Anônimo disse...

Na verdade, tenho algumas dúvidas sobre pontuação em algumas orações adjetivas. Por exemplo, professor, nas seguintes frases, qual é o alcance determinado pela vírgula.

1) Eu tenho um blog na internet, que fala sobre os malefícios do fumo;

2) Eu tenho um blog na internet que fala sobre os malefícios do fumo;

Pretendo dizer que tenho apenas um blog na internet e que este fala sobre os malefícios do fumo.

Qual a diferença de significado entre as duas frases? na Frase 2, estou a afirmar que tenho, no mínimo, dois blogs, dos quais um fala sobre os malefícios do fumo e outro fala sobre outro assunto?

Anônimo disse...

Essa biografia é invenção sua né? Tá meio exagerada, acaba ficando fantasiosa

Anônimo disse...

poderia me dizer quem é "o cara"????

Dílson Catarino disse...

Esse texto é apenas um exercício de criação de texto narrativo. É ficção, evidentemente.

Dílson Catarino disse...

Esse texto é apenas um exercício de criação de texto narrativo. É ficção, evidentemente.

Anônimo disse...

desculpa, mas é q eu pensei ter reconhecido nele uma pessoa, eu diria até, um sociólogo muito famoso.....hauhauhau....vamos ver se passa essa!!!!!

Anônimo disse...

Só achei extremamente desnecessário falar da vida de podridão do cara e no final dizer que é um advogado e político, extremamente precoceituoso, pois existem muitos nessa profissão que tem idoneidade. Mas só complica para nossa sociedade mais do que preconceituosa ficar apertando na tecla que políticos e advogados não prestam, pois já existe essa mancha e com isso só intensifica o preconceito de uma sociedade que também já está perdendo a sua "cara" democrática. Desculpe, mas essa é a minha opinião.

Anônimo disse...

Quero esclarecer uma dúvida. Em um texto em que se usa o pronome você, ao aparecer um vti, uso te ou lhe?
Por exemplo: Eu vou te/lhe (para você) dizer algo.
Obrigado.