Mostrando postagens com marcador Literatura; Humanismo; Gil Vicente. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Literatura; Humanismo; Gil Vicente. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Auto da Barca do Inferno



Fonte: Orfeu Spam 14 – Jornal eletrônico de poesias e artes – Editor: Jairo Luna - http://www.jayrus.art.br/index14.html

            De Gil Vicente (1465?-1536?) pouco se sabe em concreto. Desconhece-se o local e a data exactos do nascimento e morte. Alguns documentos dão-no como, além de dramaturgo, ourives. Sabe-se, todavia, que no dia 8 de Junho de 1502 representou um monólogo à rainha D. Maria. É provável que tenha nascido na província (Guimarães), cedo se fixando em Lisboa. Na capital, a sua principal ocupação parece ter sido a de escrever e representar autos nas cortes do rei D. Manuel e do rei D. João III. É considerado o pai do teatro português. De 1502 a 1536, Gil Vicente produziu mais de quarenta peças de teatro, chegando a publicar em vida algumas delas. Colaborou no “Cancioneiro Geral”, de Garcia de Resende. No entanto, só em 1562 é que o seu filho Luís Vicente publicou toda a sua obra com o título “Compilaçam de todalas obras de Gil Vicente”, a qual se reparte em cinco livros. Da compilação, destacam-se as peças mais conhecidas: Auto da Índia (1509), Exortação da Guerra (1513), Quem Tem Farelos? (1515), Auto da Barca do Inferno (1517), Auto da Fama (1521), Farsa de Inês Pereira (1523), Auto da Feira (1528) e Floresta de Enganos (1536).

Auto da Barca do Inferno - Gil Vicente

Definição de auto: designação genérica para peças cuja finalidade é tanto divertir quanto instruir; seus temas, podendo ser religiosos ou profanos, ‘sérios ou cômicos, devem, no entanto, guardar um profundo sentido moralizador.
            O teatro vicentino não foi escrito em prosa, mas em versos. Por isso é poético. Adotava, predominantemente, o verso redondilho (maior ou menor), de origem popular e medieval. Possui muitas ressonâncias no Brasil, dentre os quais se destacam as peças didáticas de José de Anchieta (segunda metade do século XVI), Morte e Vida Severina (1956), de João Cabral de Melo Neto, e o Auto da Compadecida (1959), de Ariano Suassuna.

Pequeno resumo
            Auto da Barca do Inferno é um auto onde o barqueiro do inferno e o do céu esperam à margem os condenados e os agraciados. Os que morrem chegam e são acusados pelo Diabo e pelo Anjo, mas apenas o Anjo absolve.
            O primeiro a chegar é um Fidalgo, em seguida um agiota, um Parvo (bobo), um sapateiro, um frade, uma cafetina, um judeu, um juiz, um promotor, um enforcado e quatro cavaleiros. Um a um eles aproximam-se do Diabo, carregando o que na vida lhes pesou. Perguntam para onde vai a barca; ao saber que vai para o inferno ficam horrorizados e se dizem merecedores do Céu. Aproximam-se então do Anjo que os condena ao inferno por seus pecados.
            O fidalgo, o onzeneiro (agiota), o sapateiro, o frade (e sua amante), a alcoviteira Brísida Vaz (cafetina e bruxa), o judeu, o corregedor (juiz), o procurador (promotor) e o enforcado são todos condenados ao inferno por seus pecados, que achavam pouco ou compensados por visitas a Igreja e esmolas. Apenas o parvo é absolvido pelo Anjo. Os cavaleiros sequer são acusados, pois deram a vida pela Igreja.
            O texto do Auto é escrito em versos rimados, fundindo poesia e teatro, fazendo que o texto, cheio de ironia, trocadilhos, metáforas e ritmo, flua naturalmente. Faz parte da trilogia dos Autos da Barca (do Inferno, do Purgatório, do Céu).

Características:
Estilo: obra escrita em redondilha maior (sete sílabas poéticas), em tom coloquial e com intenção marcadamente doutrinária, fundindo em algumas passagens o português, o latim e o espanhol. Cada personagem apresenta, através da fala, traços que denunciam sua condição social.
Estrutura: peça teatral em um único ato, subdividido em cenas marcadas pelos diálogos que o Anjo ou o Diabo travam com os personagens.
Cenário: um ancoradouro, no qual estão atracadas duas barcas. Todos os mortos, necessariamente, têm de passar por esta paragem, sendo julgados e condenados ou à barca da Glória ou à barca do Inferno.

Personagens
Fidalgo: representa a nobreza, que chega com um pajem, uma roupagem exagerada e uma cadeira de espaldar, elementos característicos de seu status social. O diabo alega que o Fidalgo o acompanhará por ter tido uma vida de luxúria e de pecados. Ao Fidalgo, nada lhe valem as “compras” de indulgências ou orações encomendadas. A crítica à nobreza é centrada nos dois principais defeitos humanos: o orgulho e a prática da tirania.
Onzeneiro: o segundo personagem a ser inquirido é o Onzeneiro (agiota), usuário que ao chegar à barca do Diabo descobre que seu rico dinheiro ficara em terra. Utilizando o pretexto de ir buscar o dinheiro, tenta convencer o Diabo a deixá-lo retornar, mas acaba cedendo às exigências do julgamento.
Parvo: um dos poucos a não ser condenado ao Inferno. O Parvo chega desprovido de tudo, é simples, sem malícia e consegue driblar o Diabo, e até injuriá-lo. Ao passar pela barca do Anjo, diz ser ninguém. Por sua humildade e por seus verdadeiros valores, é conduzido ao Paraíso.
Sapateiro: representante dos mestres de ofício, que chega à embarcação do Diabo carregando seu instrumento de trabalho, o avental e as formas. Engana na vida e procura enganar o Diabo, que espertamente não se deixa levar por seus artifícios.
Frade: como todos os representantes do clero, focalizados por Gil Vicente, o Frade é alegre, cantante, bom dançarino e mau-caráter. Acompanhado de sua amante, o Frade acredita que por ter rezado e estar a serviço da fé, deveria ser perdoado de seus pecados mundanos, mas contra suas expectativas, é condenado ao fogo do inferno. Deve-se destacar que Gil Vicente desfecha ardorosa crítica ao clero, acreditando-o incapaz de pregar as três coisas mais simples: a paz, a verdade e a fé.
Brísida Vaz: misto de alcoviteira e feiticeira. Por sua devassidão e falta de escrúpulos, é condenada. Personagem interessante que faz o público leitor conhecer a qualidade moral de outros personagens que com ela se relacionaram.
Judeu: entra acompanhado de seu bode. Deplorado por todos, até mesmo pelo Diabo que quase se recusa a levá-lo, é igualmente condenado, inclusive por não seguir os preceitos religiosos da fé cristã. Bom lembrar que, durante o reinado de D. Manuel, houve uma perseguição aos judeus visando à sua expulsão do território português; alguns se foram, carregando grandes fortunas; outros converteram-se ao cristianismo, sendo tachados de cristãos novos.
Corregedor e Procurador: ambos representantes do judiciário. Juiz e advogado, deviam ser exemplos de bom comportamento e acabam sendo condenados justamente por serem tão imorais quanto os mais imorais dos mortais, manipulando a justiça de acordo com as propinas recebidas.
Enforcado: chega ao batel, acredita ter o perdão garantido: seu julgamento terreno e posterior condenação à morte o teriam redimido de seus pecados, mas é condenado também a ir para o Inferno.
Cavaleiros: finalmente chegam à barca quatro cavaleiros cruzados, que lutam pelo triunfo da fé cristã e morrem em poder dos mouros. Obviamente, com uma ficha impecável, serão todos julgados e perdoados.

Cada um dos personagens focalizados adentram a morte com seus instrumentos terrenos, são venais, inconscientes e por causa de seus pecados não atingem a Glória, a salvação eterna. Destaque deve ser feito à figura do Diabo, personagem vigorosa que conhece a arte de persuadir, é ágil no ataque, zomba, retruca, argumenta e penetra nas consciências humanas. Ao Diabo cabe denunciar os vícios e as fraquezas, sendo o personagem mais importante na crítica que Gil Vicente tece de sua época.


O Velho da Horta



Fonte: Orfeu Spam 14 – Jornal eletrônico de poesias e artes – Editor: Jairo Luna - http://www.jayrus.art.br/index14.html


            "O maior risco da vida/e mais perigoso, é amar". Estas foram as declarações mais lúcidas e importantes do discurso do protagonista desta peça vicentina, o Velho, que tinha uma horta, mas de nada lhe valeram os bens, como a seguir vamos verificar.
            A farsa "O Velho da Horta", representada para D. Manuel, em 1512, conta a história de um velho que se apaixona por uma rapariga e "por via de uma alcoviteira gastou toda a sua fazenda".
            Gil Vicente, profundo conhecedor da alma humana, crítico irreverente e mordaz, dá vida "aos homens que se enamoram fora da idade porque não souberam aproveitar-se do amor quando eram jovens, ou porque pretendem enganar a morte quando já a trazem às costas" (Alfonso Castelão).
            O eterno drama destes velhos constitui, portanto, o tema desta farsa de Mestre Gil. A farsa conta-nos que, "andando um velho, dono de uma horta, a espairecer por ela - sendo o seu hortelão fora - veio uma moça, de muito bom parecer, buscar hortaliça, e o velho dela se enamorou".
            Aos seus protestos de amor, a moça responde: "Já perto sois de morrer / donde nasce esta sandice, / que, quanto mais na velhice, / amais os velhos viver?". A jovem afasta-se com as couves e cheiros que buscava e, como paga, o Velho pede-lhe apenas uma rosa "por são/colhidas de vossa mão".
            Interrompido nos seus arroubos por um Parvo, seu criado, que traz um recado da mulher do Velho de que "a panela já está cozida", este afirma que não quer comer e manda o criado trazer a sua viola para cantar os seus amores. A esposa, que chega, apercebe-se dos devaneios do marido e adverte-o: "Que peçonha / Havei má hora, vergonha / a cabo de sessenta anos, / que sedes já carantonha".
            Mas o pobre enamorado é espicaçado pelas intrigas, invocações de amores e esconjuros da hábil alcoviteira Branca Gil. Esta promete-lhe êxito nos amores com uma condição (que não é pequena): "Mas para isto andar direito, / eu já,senhor meu, não posso / vencer uma moça tal / sem gastardes bem do vosso".
            Depois de lhe ter extorquido bastantes cruzados, Branca Gil é presa "da parte de El-Rei", por um alcaide e quatro beleguins, para ser açoitada por alcoviteira. O Velho fica sem a fazenda e sem a Moça (que, entretanto, estava "na rua para ir casar"), e lamenta-se: "Se os jóvenes amores / os mais tem fins desastradas, / que farão as cãs lançadas / no conto dos amadores!".

A Farsa de Inês Pereira





Fonte: Orfeu Spam 14 – Jornal eletrônico de poesias e artes – Editor: Jairo Luna - http://www.jayrus.art.br/index14.html

            Gil Vicente foi acusado de plagiar obras do teatro espanhol de Juan del Encina. Em vista disso, pediu para que aqueles que o acusavam dessem um tema para que ele pudesse, sobre ele, escrever uma peça. Deram-lhe o seguinte ditado popular como tema: “Mais vale asno que me leve que cavalo que me derrube”.
             No auge de sua carreira dramática, sobre este tema Gil Vicente criou A Farsa de Inês Pereira, respondendo assim àqueles que o acusavam de plágio. A peça foi apresentada pela primeira vez para o rei D. João III, em 1523.
            A Farsa de Inês Pereira é considerada a peça mais divertida, complexa e humanista de Gil Vicente. O aspecto humanístico da obra vê-se pelo fato de que a protagonista trai o marido e não recebe por isso nenhuma punição ou censura, diferentemente de personagens de O Auto da Barca do Inferno e O Velho da Horta, que são castigadas por fatos moralmente parecidos.
            A Farsa de Inês Pereira é composta de três partes:
             1. Inês fantasiosa
             2. mal-maridada
            3. Inês quite e desforrada

Personagens:
Inês Pereira: jovem esperta que se aborrece com o trabalho doméstico. Deseja ter liberdade e se divertir. Sonha casar-se com um marido que queira também aproveitar a vida.
Mãe de Inês: mulher de boa condição econômica, que sonha casar Inês com um homem de posses.
Leonor Vaz: fofoqueira, encarregava-se normalmente em arranjar casamentos e encontros amorosos.
Pero Marques: primeiro pretendente de Inês rejeitado por ser grosseiro e simplório, apesar da boa condição financeira. Foi seu segundo marido.
Latão e Vidal: judeus casamenteiros, assim como Leonor.
Brás da Mata: escudeiro, índole má, primeiro marido de Inês.
Moço: criado de Brás.
Ermitão: antigo pretendente de Inês e amante depois de seu casamento com Pero.
Fernando e Luzia: amigos e vizinhos da mãe de Inês.
           
Resumo:           
            Inês Pereira é uma jovem solteira que sofre a pressão constante do casamento, e reclama da sorte por estar presa em casa, aos serviços domésticos, cansando-se deles. Imagina Inês casar-se com um homem que ao mesmo tempo seja alegre, bem-humorado, galante e que goste de dançar e cantar, o que já se percebe na primeira conversa que estabelece com sua mãe e Leonor Vaz. Essas duas têm uma visão mais prática do matrimônio: o que importa é que o marido cumpra suas obrigações financeiras, enquanto que Inês está apenas preocupada com o lado prazeroso, cortesão.
            O primeiro candidato, apresentado por Leonor Vaz, é Pero Marques, camponês de posses, o que satisfazia a idéia de marido na visão de sua mãe, mas era extremamente simplório, grosseirão, desajeitado, fatos que desagradam Inês. Por isso Pero Marques é descartado pela moça.
            Aceita então a proposta de dois judeus casamenteiros divertidíssimos, Latão e Vidal, que somente se interessam no dinheiro que o casamento arranjado pode lhes render, não dando importância ao bem-estar da moça. Então lhe apresentam Brás da Mata, um escudeiro, que mostra-se exatamente do jeito que Inês esperava, apesar das desconfianças de sua mãe.
            Eles se casam. No entanto, consumado o casamento, Brás, seu marido, mostra ser tirano, proibindo-a de tudo, até de ir à janela. Chegava a pregar as janelas para que Inês não olhasse para a rua. Proibia Inês de cantar dentro de casa, pois queria uma mulher obediente e discreta.
            Encarcerada em sua própria casa, Inês encontra sua desgraça. Mas a desventura dura pouco pois Brás torna-se cavaleiro e é chamado para a guerra, onde morre nas mãos de um mouro quando fugia de forma covarde.
            Viúva e mais experiente, fingindo tristeza pela morte do marido tirano, Inês aceita casar-se com Pero Marques, seu antigo pretendente. Aproveitando-se da ingenuidade de Pero, o trai descaradamente quando é procurada por um ermitão que tinha sido um antigo apaixonado seu. Marcam um encontro na ermida e Inês exige que Pero, seu marido, a leve ao encontro do ermitão. Ele obedece colocando-a montada em suas costas e levando Inês ao encontro do amante. 
            Consuma-se assim o tema, que era um ditado popular de que "é melhor um asno que nos carregue do que um cavalo que nos derrube".