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sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Palestra-mico

Cheguei à escola onde daria a palestra às 19h35. À frente do prédio estava a coordenadora, esbaforida, pois havia esquecido a chave do portão. Apresentei-me a ela e ao senhor que a acompanhava; conversamos um pouco, até que surgiu um carro veloz, do qual desceu uma senhora arredondada e um tanto corcunda — a diretora da escola — mais esbaforida que a coordenadora, correndo e gritando: “Tá aqui a chave!”, “Tá aqui a chave!”. Eram 19h40.

Entramos na escola. Passamos por um longo corredor, com várias portas de ambos os lados que dão acesso às salas de aula, até chegarmos à biblioteca — uma pequena sala de uns 20m2, que seria inaugurada naquela noite, em homenagem a um pequeno aluno que falecera havia algum tempo. Encaminhamo-nos ao pátio externo, onde aconteceria a palestra. Ficava ao lado do parquinho das crianças, onde todos os brinquedos — escorregador, labirinto, roda-roda (sei lá se os nomes são esses mesmos) — foram literalmente “embrulhados” pelas professoras com papel crepom para que ninguém os visse de fato. A escola preparara uma festa, pois inaugurariam também o parquinho naquela noite.

Aos poucos os convidados foram chegando e sentando-se nas cadeiras adrede preparadas — umas cento e dez cadeiras. Enquanto isso, preparei o meu material: instalei o lap top e o projetor e pendurei os fôlderes do Sistema Maxi. Estava pronto para começar. Fiquei um pouco preocupado, pois a tomada elétrica em que liguei a extensão ficava a uns 2m de altura; o fio, então, ficou pendurado, solto na parede, descendo até o chão. Da parede até a mesa em que estava o lap top havia uns 5m; o fio, também solto. Eram 19h55.

20h: a coordenadora pega o microfone — Vamos começar! Pensei cá comigo. Enganei-me; ela apenas pediu que os convidados saíssem pelos fundos do pátio para presenciarem a bênção do “Cristo” da escola pelo padre da cidade. Todos se levantam e se dirigem para onde ela havia indicado, passando sobre o fio — que estava solto! Eu, ao lado da mesa, pedia: “Cuidado com o fio. Cuidado com o fio”. Felizmente ninguém tropeçou nele. A diretora, depois que a maioria já havia passado, interveio, mastigando alguma coisa, dizendo que se enganaram: não era para sair pelos fundos, e sim pela frente. Todos voltam em um burburinho de reclamação. E eu, ao lado da mesa, mais uma vez desesperado: “Cuidado com o fio. Cuidado com o fio”. Ninguém tropeçou, felizmente.

Eu fiquei por ali mesmo, fingindo mexer em alguma coisa importante. Não tardou para a coordenadora e a diretora, novamente esbaforidas, voltarem correndo para me buscar a fim de que eu também participasse da solenidade. Acompanhei-as até a frente da escola, onde colocaram uma mesa que serviria de altar e onde estavam o padre e todos os convidados, tomando a calçada e toda a rua, esperando-me para começar uma missa — mas não seria apenas uma bênção? A diretora, já menos esbaforida e com algumas migalhas de algo parecido com pão no canto da boca, levou-me até o altar e entregou-me um turíbulo, pedindo que eu o segurasse para o padre — turíbulo, aliás, que não foi usado em momento algum. Começa a missa. O cameraman liga sua aparelhagem para filmar a solenidade, com um holofote imenso, direcionado ao padre e a mim.

A missa durou uns vinte minutos. É importante informar que a temperatura, naquela noite, estava em torno de 28 graus e que eu estava de terno e gravata. Aquela lâmpada sobre mim deve ter aumentado a temperatura para uns 32 graus. Eu me sentia derreter...

Terminada a missa, depois de eu ter espargido água benta na frente da escola a pedido da mastigadora diretora, chamaram-me para descerrar a fita inaugural da escola, que não estava sendo inaugurada; ela já funcionava há dois anos. Mais uma vez o holofote sobre mim. Finalmente entramos na escola. O padre foi espargindo água benta de sala em sala, até chegarmos à biblioteca. Adivinhem quem segurava o recipiente com a água benta para o padre: eu, logicamente.

Na biblioteca havia, em uma das paredes, uma fotografia do menino homenageado sob uma pequena cortina que seria aberta, simbolizando a inauguração. A sala ficou superlotada (e o holofote sobre mim; e eu de terno; aliás, só eu de terno; os demais de jeans e camisa de manga curta — uns e outros de bermudas...). A coordenadora chamou a família do menino, e a diretora, ainda com as migalhas no canto da boca, leu um discurso de aproximadamente quatro páginas. Ao término, uma das presentes puxa uma ave-maria. Acabaram rezando umas doze. Enfim inauguraram a biblioteca e convocaram todos para o pátio externo. Saí daquela salinha suando em bicas, passei pela cozinha, que era contígua à biblioteca, e pedi um copo d´água. Uma professora lavou um copo que estava embaixo da pia e me serviu água da torneira, já que, segundo ela, haviam esquecido os copos descartáveis e as jarras para colocar água.

20h50: uma professora começa a solenidade, dando boas-vindas a todos, dizendo: “Gostaria de agradecer a presença dos pais, das autoridades presentes” (Observe o vício, o chavão, pois a única autoridade presente era o vice-prefeito, que, por sinal, era pai de aluno; não estava lá, então, representando o prefeito, e sim como pai de aluno.) e avisando que, depois das solenidades, seria servido um coquetel, que já estava sobre as mesas do corredor, bem ao lado das cadeiras em que os pais se sentaram para assistir à palestra. Colocaram papel de embrulho sobre os pratos.

Os alunos da pré-escola foram chamados para apresentarem um esquete, acompanhados por uma aluna do Ensino Médio, que tocou algumas músicas em seu ‘teclado’.

21h05: a professora chama a coordenadora. Esta agradece novamente e apresenta os professores da escola, um a um, que sobem ao palco, também um a um, sob o aplauso da platéia. Eu também sou chamado para, enfim, começar a palestra. Quando subo ao palco, todos os professores me rodeiam e me aplaudem efusivamente. Foi constrangedor: eu, ali, no meio daquela roda de professores aplaudindo.

21h20: (A palestra havia sido marcada para as 20h!) comecei a palestra, usando um microfone dourado, ligado a uma pequena caixa de som, cinco metros atrás de mim, com um fio de apenas cinco metros também. A minha locomoção ficou totalmente prejudicada, além de o som ficar às minhas costas. É muito estranho ouvir a si próprio às suas costas...

Durante a palestra, as crianças que apresentaram o teatrinho ficaram soltas pelo pátio. Algumas corriam em volta das cadeiras onde os pais estavam sentados, passando pelo fio solto do lap top. Cada criança que passava por ali me deixava desesperado, diante da possibilidade de tropeçarem no fio e desligarem o lap top e o projetor. Outras foram para trás da caixa de som brincar de pega-pega. Eram aproximadamente vinte, correndo por todos os lados — inclusive entre mim e a platéia — e gritando. Alguns adolescentes ficaram na calçada, conversando, rindo alto, xingando uns aos outros de vez em quando, como ocorre em qualquer roda de jovens. Outros ficaram dentro da escola, em uma sala com janelas para o pátio externo. Às vezes, um deles aparecia na janela para ver o que acontecia durante a palestra; às vezes, dois ou mais — para eles era uma festa. Almofadas voavam lá dentro.

Gritos se sucediam; das crianças, dos adolescentes, de alguém de lá dentro da sala, da diretora pedindo silêncio aos adolescentes, da professora tentando acalmar as crianças, de alguns pais ralhando com seus filhos. Por duas vezes derrubaram uma bandeja vazia na cozinha. O barulho era infernal. Os pais se levantavam, ora para acudir o filho que caíra, ora para levar o filho ao banheiro, ora para buscar o filho que correra para a rua, ora para conversar com o filho que estava com fome e queria comer logo; alguns se levantavam para fumar, levando outros consigo, e ficavam a conversar, olhando para mim de longe. Houve um momento da palestra em que duas fileiras ficaram completamente vazias para, logo depois, voltarem a se encher. As crianças, curiosas, iam até o parquinho; algumas tentavam olhar por debaixo dos “embrulhos”, e algumas professoras corriam até lá, gritando com eles e os expulsando de lá.

A minha palestra tem duração de uma hora e meia aproximadamente. Percebi que deveria ser mais rápido dessa vez, principalmente quando a diretora surgiu na entrada do pátio, mastigando alguma coisa e olhando para mim, fingindo interesse. Entrava, ficava um pouco lá dentro — acredito que na cozinha — e voltava mastigando, mastigando. E os demais olhando para o relógio insistentemente, acho que pensando no coquetel que seria servido ao final da palestra e que já estava sobre as mesas, devidamente coberto por papel de embrulho, desde antes das 20h. E já eram 22h!

22h05: Terminei a palestra para alegria geral, inclusive para mim. Acho que ninguém, absolutamente ninguém, escutou atentamente frase alguma minha. O coquetel finalmente pôde ser servido: tubinhos de maionese, torradinha, coxinha frita, palitinhos de salsicha e azeitona enfiados em um mamão verde, coca cola e tubaína. Estes, os refrigerantes, quentes; aqueles, os salgadinhos, murchos e frios.

A diretora, sempre mastigando algo e, desta feita, com maionese no cantinho da boca, diversas vezes veio até mim, enquanto eu desligava o lap top e o projetor, trazendo consigo uma bandeja de algum salgadinho e insistindo que eu comesse alguma coisa. Eu, gentilmente, dizia-lhe que já havia comido ‘alguma coisa’ antes de chegar lá e que não tinha o hábito de me alimentar à noite, principalmente àquela hora.

Rapidissimamente consumiram quase tudo o que havia e foram-se embora. Às 22h25 despedi-me da diretora (sujeirinha no canto da boca) e da coordenadora, saí de lá e fui jantar, sozinho, em uma pizzaria na cidade vizinha, onde estava hospedado, rindo-me de tudo o que havia acontecido naquela noite.

terça-feira, 8 de janeiro de 2008

Esquinas

Havia muito tempo eu não caminhava. Antigamente, em quase todos os finais de tarde, Teté e eu caminhávamos perto de casa – Zerão, barragem do igapó ou pela rua mesmo. Depois, comprei uma esteira e comecei a caminhar em casa. Fazia isso constantemente, ao som de Led Zepellin, Frank Zappa, Johnny Winter, Lynyrd Skynyrd, Allman Brothers, entre outros. Mas, de repente, não sei por quê, parei de caminhar. Faz uns sete ou oito meses. Hoje, porém, resolvi andar um pouco. Aproveitei que teria de levar o carro de minha filha Luana ao Super Martelo, para desamassá-lo, e voltei a pé para casa; cinqüenta e cinco minutos de caminhada por algumas ruas londrinenses.

Fui acometido, durante esse tempo, por uma nostalgia que havia muito eu não sentia. Reconheci cada árvore, cada casa, cada esquina. Já passara muitas vezes por aqueles lugares na minha adolescência – e até quando adulto também. Andei pela Rua João XXIII, pelo Vale Verde, pelo Água Fresca, pela Rua Humaitá, pelo Zerão. Lugares por onde outrora eu andava quase todos os dias. E sempre que eu andava, contemplava com satisfação as árvores, os passarinhos, as ruas, as calçadas, a arquitetura dos edifícios, as pessoas. Acho que por isso que escrevia poesias todos os dias naquela época, e hoje, nada. Naquela época, havia deleite nas minhas andanças. Hoje ando de carro; não tenho tempo para olhar para as coisas; não tenho tempo para me admirar com nada. Naquela época, andava de casa até o centro (eu morava perto do Com Tour - 6 ou 7km), andava da UEL até minha casa, da UEL até o centro, da minha casa até a casa de Teté; andava de manhã, à tarde, de madrugada. Andava. Andava por prazer. Hoje não tenho tempo. Virei homem. Não no sentido viril, pois sempre fui isso, mas no sentido de experiência: homem x adolescente.

Na minha caminhada de hoje, porém, senti aquele prazer inefável novamente. Admirei-me de novo com a magnificência de flamboyants, santas-bárbaras, mangueiras e árvores cujos nomes desconheço; deletei-me com as casinhas antigas de madeira que ainda existem naquela região; senti saudades das repúblicas que por lá havia na década de oitenta e que deram lugar a construções mais modernas; regozijei-me com o traçado das ruas, antigas companheiras de profundas reflexões em minhas andanças noturnas daquela época. O que mais me comoveu, no entanto, foi a sensação que tive ao passar pela esquina das ruas Humaitá e Paranaguá. Lá, na calçada da Humaitá (para quem caminha pela Paranaguá, vindo da JK, e vira à direita), mais ou menos a dois passos do meio-fio da Paranaguá e a um passo do da Humaitá, é o exato local em que Teté e eu nos beijamos pela primeira vez. Era 05 de fevereiro de 1982, três dias antes de começarmos a namorar; aproximadamente 23h; talvez mais cedo, não me lembro desse detalhe. Mas foi lá. Isso eu sei com certeza; foi lá. Senti vontade de voltar lá com Teté qualquer dia desses e repetir o beijo. Quem sabe em alguma noite romântica não façamos isso.

Preciso voltar a caminhar para sentir isso mais vezes. Preciso de mais emoções como essas para sentir mais a vida. Às vezes, nos recolhemos demasiadamente e nos tornamos velhos. Quero envelhecer, sim, pois é tolice querer permanecer jovem, mas não quero me sentir velho, deteriorado, degenerado.

quarta-feira, 25 de outubro de 2006

Histórias Escolares 1

Houve um tempo em que, em todas as aulas, antes de iniciar a explicação da matéria, enquanto os alunos se acomodavam eu colocava uma palavra no cantinho do quadro, a fim de aprimorar o vocabulário deles. Quando todos estavam acomodados, eu perguntava a eles se alguém sabia o significado da palavra do dia; se houvesse algum aluno que o soubesse, perguntava-lhe se conseguiria estruturar uma frase com tal palavra, já que saber o significado até que não é difícil, mas saber usá-la no contexto adequado o é.

Numa manhã, entrei na sala, escrevi a palavra “exortar” no canto do quadro e me postei no tablado à espera dos alunos. Uma aluna veio até mim toda sorridente e me perguntou o significado de “exortar”. Respondi-lhe com toda tranqüilidade:

― “Animar”.

Nem tive tempo de falar o segundo significado: “estimular”; ela transmudou-se, olhou-me com raiva, fechou o semblante e me disse:

― Animar é o senhor, que fica xingando a gente.

E assim caminha a educação brasileira.

segunda-feira, 23 de outubro de 2006

O Cara

O cara “se achava”. Desde pequeno se sentia mais importante do que realmente era. A realidade lhe mostrava o contrário minuto a minuto, mas ele não era muito bom nisso de realidade. Era do tipo otimista demais naquilo que se referia à sua própria pessoa. Pensava que todos gostavam DEMAIS dele, por isso sempre tinha um ar garboso, imponente, o que o deixava mais ridículo ainda. Adorava a frase “Se a vida lhe oferece um limão, faça dele uma limonada”. E ria. Ria, não. Gargalhava. Achava graça em tudo o que ele mesmo falava. Todos sempre riam dele, mas ele julgava que riam com ele, em razão dele. Era prepotente na realidade; julgava ter uma superioridade moral em relação aos demais, por isso desprezava a todos sutilmente De vez em quando, cometia pequenos delitos, nunca descobertos: surrupiava dinheiro da carteira dos amigos, apoderava-se de pequenos objetos alheios sorrateiramente, levava para si, como suvenir, cinzeiros de hotel, porta-guardanapos de restaurantes, miudezas vendidas em bazares, enfim, julgava-se sempre no direito de se apossar daquilo que não lhe pertencia sem culpa alguma no coração. Aliás, fazia isso e ria. Ria muito, afinal ele era “o cara”; os demais nada representavam para ele; eram apenas “pessoas” sem importância; ninguém era importante em sua vida, a não ser ele próprio.

No esporte, pretendia ser jogador de futebol de salão. Chegou a ser o terceiro goleiro do time infanto-juvenil do bairro. Nos dois anos em que participou do time, por duas vezes chegou a ficar no banco de reservas. Na primeira vez, durante semanas contou a todos sua experiência de estar sentado lá, ajudando o time a disputar o campeonato; acreditava que a sua simples presença estimulava os jogadores do time, que, aliás, nunca conseguiu classificação entre os oito melhores; nem entre os dez. Na segunda vez, durante semanas fez a mesma coisa: contou, contou, contou a todos a mesma história. Em tempo: as duas partidas seu time perdeu... de goleada, mas, convenhamos, a culpa não foi dele; afinal, ele nem jogou! Mas todos sabiam que, se jogasse nada conseguiria, pois era um goleiro medíocre, mas ele pensava que, se lá dentro da quadra estivesse, seu time teria melhor sorte. Tentava, porém, corromper os jogadores adversários incansavelmente, com aqueles objetos afanados, para que seu time conseguisse ao menos uma vitória. Em um jogo foi acusado pelo árbitro de tentar suborná-lo, oferecendo-lhe um apito de prata, que ele havia subtraído do pai de um amigo, que era professor de Educação Física. Ele alegou que encontrara o apito no vestiário e pensara que pertencesse ao juiz, por isso pensava estar devolvendo o objeto ao seu legítimo dono. De maneira alguma pensara em suborno. Era esperto desde menino.

Aos doze anos era coroinha da igreja Nossa Senhora das Almas; ajudava na missa das seis horas da manhã aos domingos. Horário que ninguém queria por motivos óbvios, mas ele; ah, ele! Lá estava ele todos os domingos, alegre e faceiro, às seis e quinze da manhã. Pronto para ajudar o padre em tudo o que fosse necessário. Pelo menos era isso que o padre pensava, mas sua intenção era outra. Chegava saltitante; tão feliz que até irritava o padre, pois falava demais; dava palpites errados nas horas erradas. Fazia perguntas inconvenientes a todos. Queria saber tudo sobre a missa, sobre o padre, sobre a igreja, sobre os santos, sobre o Papa, sobre os salmos, sobre tudo. E o pessoal da igreja não suportava mais tantas perguntas, além dos elogios a si próprio. Durante três anos foi o coroinha da missa das seis. Todos os velhinhos e velhinhas já sabiam quem ele era. Até gostavam dele. Ninguém jamais havia badalado o sino com tanta energia. E ria. Ria muito cada vez que badalava aqueles sinos, pois sua verdadeira intenção para fazer aquilo era chamar a atenção sobre si; era ser conhecido e ganhar a confiança das pessoas. Depois das missas, acompanhava algumas senhoras até sua casa e sempre furtava alguma coisa delas; jamais suspeitaram dele, afinal era tão atencioso, tão bonzinho, tão camarada. Até da sacristia ele levou algumas “lembranças”. Nunca foi, porém, acusado de nada; nenhuma suspeita pairava sobre ele. Era muito esperto. Chegava a acusar alguns colegas com tanta convicção que os adultos acreditavam nele e puniam o pobre coitado do inocente.

Aos quinze anos partiu para a política. Era do conselho consultivo do Grêmio Estudantil. Ninguém da diretoria queria que ele entrasse para a chapa, mas ele insistiu tanto, falou tanto, apresentou tantos argumentos, que acabaram inventando o tal do conselho consultivo. Assim ele sossegaria. Mas não sossegou. Era o mais assíduo. Nunca faltou a uma reunião sequer da diretoria, apesar de não fazer parte da diretoria. Todos diziam a ele que não era necessária sua presença, que ele não precisava se preocupar, que, quando houvesse necessidade, ele seria chamado. Mas, o quê! Lá estava ele sempre. Os diretores deixaram-no participar. Quem sabe ele não desistiria. Nunca desistiu! E ria. Ria muito em todas as reuniões. E contava muitas piadas. Todas sem graça. Mas ria de suas próprias palavras. Apresentava projetos todas as semanas; um mais desarrazoado que o outro. Alguns, porém, sofrendo reajustes, até que podiam ser realizados. Seus companheiros passaram a achá-lo inteligente e a admirá-lo por tanta pertinácia e dedicação. Nas eleições seguintes, já era o presidente do Grêmio (dizem que foram os primeiros votos que ele comprou na vida). Durante toda a época em que fez o Ensino Médio esteve à frente das agremiações estudantis.

Na faculdade também conseguiu se eleger o representante dos alunos. Aí ele começou a se revelar: dirigiu o Grêmio com mão de ferro: perseguia os que se opunham a ele; aliou-se aos bandidinhos da faculdade, e transformaram a agremiação em um reduto reservado a eles. Transformaram-se em uma pequena quadrilha; roubavam as provas e as vendiam aos demais alunos, organizavam colas coletivas para as provas que não conseguiam roubar, ameaçavam veladamente professores supostamente exigentes e disciplinadores, exigiam propina dos novos estudantes, arrombavam carros no estacionamento da faculdade, roubavam tudo o que encontravam e, depois, vendiam aos próprios estudantes, estupravam garotas e alguns garotos também, enfim, “o cara” transfigurou-se. Virou bandido. Continuava, porém, dissimulado: quem o via não imaginava ser ele o líder da bandidagem. Na única vez em que foi interrogado pela polícia sobre os acontecimentos na faculdade, mostrou-se tão seguro e tranqüilo que convenceu os policiais de sua inocência e ingenuidade. Todos se convenceram de que ele nada sabia sobre tudo aquilo. Aliás, até vendeu aos policiais uns objetos roubados. Era, realmente, “o cara”.
Hoje, está milionário. Formou-se em Direito e advogou por muitos bandidos de ‘colarinho branco’. Enfronhou-se na política. Conhece os “podres” de muitos políticos, por isso os mantém sob tutela. Continua usando as mesmas táticas da época da faculdade, agora mais sofisticadas e mais violentas. Já ocorreram mortes suspeitas em seu meio, mas ele continua “limpo”: nada sabe, nada fez. Continua esperto. É amigo íntimo do Presidente da República, um dos antigos líderes da quadrilha, mas os dois nunca são vistos juntos para não levantar suspeitas. É um dos mais cotados para assumir a presidência do partido que sustenta a Presidência da República. Nos meios político-bandidos, o partido de que faz parte e que sustenta a Presidência da República, é chamado de Partido das Tramóias ou Partido dos Trambiques. Continua esperto e insuspeito “o cara”.

quarta-feira, 11 de outubro de 2006

A coisa e o coisinho.

Certa vez perguntei ao meu amigo José Milanez, excelente professor de Literatura, de Português e de Redação, exímio escritor e meu ex-professor, por que ele não publicava um livro. Ele me respondeu que o que teria a escrever alguém já escrevera, que seria, então, perda de tempo, pois não traria novidade alguma. Essas palavras do Mila me fizeram ficar sem escrever um bom tempo; cada vez que eu pensava em escrever uma poesia, ou mesmo alguma prosa, eu me lembrava daquele diálogo. Era como se ele estivesse ao meu lado, dizendo: “Nada é novidade! Alguém já escreveu sobre isso. Esqueça!”. E eu desistia. Mas desisti de desistir e voltei a escrever. Sei que o que eu tenho a dizer alguém já pode ter dito, mas não da maneira como eu quero dizer. Direi, portanto, tudo o que tenho a dizer (Será que alguém já disse isso?). Resolvi, hoje, escrever asneiras. Vamos, então, a elas:

Sei que muitos já escreveram alguma coisa sobre a palavra COISA, mas eu não resisti: Alguma coisa aconteceu comigo que me trouxe coisas desconexas a respeito. Isso aconteceu depois de conversar com certa pessoa que, em quinze minutos de colóquio, falou sete vezes a palavra coisa (dizem que sete é número de mentiroso, mas foi isso mesmo. Sete vezes coisa). Chegou ao absurdo de, num momento em que o raciocínio lhe faltou e ele não sabia como terminar a frase que começara, findou-a com “e coisa”. Assim. Desse jeito, mesmo. “blá, blá, blá, piriri, piriri, ... e coisa!”. Fiquei sem entender o que ele queria dizer, mas ele saiu feliz, pois julgou ter encerrado o assunto, e foi procurar outra coisa para fazer.

Coisa. Palavra quase que totalmente desprovida de sentido, mas com uma infinidade de usos e abusos. Tente explicar o significado da palavra coisa”; alguém consegue? Ninguém! Mas as coisas que inventam para usá-la chegam a ser absurdas:

─ E, aí, beleza? Como vão as coisas?
─ Ih, meu; a coisa tá feia. Tem acontecido cada coisa comigo que, se eu te contar, cê nem acredita.
─ Que coisa, cara! Ânimo! Cê não pode deixar essas coisas te deprimirem, não. ─ Ó! Escuta uma coisa: Cê se lembra do ... como é que é o nome dele mesmo, meu? Cê deve lembrar, cara. É o coisinho que namorava aquela coisinha deliciosa da Cris. Lembra? Então. Ele freqüenta um lugar que faz umas coisas para ajudar os outros. Já me contaram cada coisa deles! Aliás, por aqui não se fala noutra coisa.
─ Ah, não sei, não, meu. Eu não tenho coisa alguma a ver com essas coisas de macumba...
─ Que macumba, o quê, cara! Eu não entro nessas coisas por coisa nenhuma. A coisa lá é de energia; essas coisas transcendentais...
─ Ah, não, meu. Fique tranqüilo. Deixe que eu cuido de minhas coisas.
─ Então, tá, cara. Mas, qualquer coisa, me procura, belê?

E assim milhares e milhares de coisas surgem nos diálogos cotidianos sem que ninguém se aperceba de que há um vício nesse uso abusivo da coisa. O maior absurdo que eu já ouvi em relação à coisa foi a frase: "Eu tô coisando umas coisinhas por aí”. Essa é a campeã.

Os músicos e os poetas também aderiram à coisa: Eu me lembro de uma música que uma professora vivia cantando pelos corredores da escola: “Ô, coisinha tão bonitinha do pai”. Ela cantava e dizia: “Em se tratando de música, essa é a coisa mais linda que já ouvi”. Isso é que pode ser considerado coisificar a coisa que o coiso coisou.

A coisa tomou conta do linguajar brasileiro. Até o Presidente Lula Molusco se utiliza da coisa sistematicamente: cada vez que lhe falta uma palavra (e são centenas de milhares as que lhe faltam), ele busca ajuda na coisa:

“A coisa mais importante para o Brasil é que as coisa melhorou depois de eu assumir essa coisa aqui”;
“Não sei nada dessas coisa que aconteceu”;
“Corrupção é uma coisa que existe no ser humano de qualquer partido”;
“Se há uma coisa que eu posso dizer é que ética e humildade é uma coisa que só eu tenho”.
“A traição é uma coisa que me magoa muito”.
“Aos traidores só posso dizer uma coisa; Vocês me traíram!”.
“Meu povo, essas coisa que andam falando de mim são coisa que as elite inventou”.
"Eu sou a melhor coisa que já nasceu no Brasil!". Que coisa, hein?

Agora, cá entre nós, não existe coisa mais filosófica que a frase “Uma coisa é uma coisa; outra coisa é outra coisa”. E eu arremato: Há coisas que não são uma coisa nem outra coisa; são, então, coisa alguma. Mas a frase mais linda é a que Teté usa quando chega perto dos cachorros e dos gatos aqui de casa: “Coisa mais querida da vida!”.

terça-feira, 26 de setembro de 2006

A morte de meu irmão

Era o fim. Meu irmão iria morrer. Eu não suportei ver aquela cena. Corri para trás de casa e me encolhi no canto onde estavam os quatro ratinhos que haviam nascido uns cinco dias atrás, pelados ainda, todos rosa; se não me engano com os olhinhos esbugalhados, mas ainda dentro das pálpebras. Não sei; essa é a lembrança que carrego comigo daquele dia. Os olhinhos esbugalhados dos ratinhos pelados. Não me lembro dos pais deles, mas me lembro muito bem deles, que cresceram um pouco e sumiram-se dali rapidamente.
Eu tinha só quatro anos e já iria encarar a morte! Meu irmão iria morrer. Tive certeza disso quando o vi saindo do milharal deixando um rasto de sangue pelo chão arenoso de nosso quintal. Vi também o facão que ele usara jogado entre os pés de milho, todo vermelho. Uma de suas pernas estavam ensangüentadas, e ele corria gritando de dor.
De lá de trás de casa, ouvi minha mãe gritando, chamando pela vizinha e perguntando sobre mim. Ninguém sabia onde eu estava. A vizinha veio gritando também. E meu irmão chorava de dor. Aquela gritaria parecia não ter fim. Minha mãe e a vizinha gritavam; meu irmão gritava e chorava de dor. Mais vizinhas correram até minha casa; mais gritos de mulheres desesperadas. Logo depois, porém, veio o silêncio. Nem choro, nem grito, nada. Silêncio total. Eu não tinha coragem de sair dali. Fiquei olhando para os ratinhos, esperando que eles fizessem alguma coisa, mas eles nada faziam; eram muito pequenos; eram frágeis demais. Não tinham nem um pelinho; eram lisinhos, lisinhos. Parecia até serem transparentes. Um deles parecia uma chupeta. Parecia a minha chupeta!
Naquele momento, lembrei-me de Deus. Lembrei-me de que minha mãe sempre dizia que Deus tudo pode. Comecei a rezar desesperadamente, pedindo a Ele que salvasse meu irmão, que, se ele já tivesse morrido, o trouxesse de volta. Naquele momento fiz minha primeira promessa: prometi que deixaria de chupar chupetas se trouxesse meu irmão de volta. Minha mãe sempre pedia a Deus que eu deixasse de chupar chupetas, mas eu era meio viciado nisso; não conseguia ficar sem minha chupeta cor-de-rosa. Foi o meu primeiro vício...
Cansada de pedir e nunca ser atendida, um dia minha mãe jogou minha chupeta no fogão a lenha que havia na cozinha de casa e saiu para o quintal. Eu peguei um pedaço de madeira e fui salvar meu objeto de adoração: puxei-a para fora do fogão; ela caiu e grudou-se à minha perna, deixando uma cicatriz no formato do bico da chupeta. Fiquei queimado, mas mostrei à minha mãe o quão importante era aquele vício para mim. Ela passou a permitir que eu me satisfizesse com a chupeta, numa tentativa de me compensar a queimadura.
Aquele ratinho-chupeta me deu a idéia: prometi nunca mais chegar perto de uma chupeta se meu irmão não morresse. Fiquei ali, conversando com os ratinhos, comigo mesmo e com Ele, pedindo, pedindo, pedindo. Ele nunca atendeu aos pedidos de minha mãe, mas comigo poderia ser diferente, já que agora era um caso de morte, e eu sempre havia sido bonzinho como minha mãe sempre pedia.
Mais tarde, ouvi a voz de minha mãe já dentro de casa, bronqueando com meu irmão, dizendo que nós, as crianças, não tínhamos que ir ao milharal tentar colher milhos sozinhos, que era perigoso, que ele teve sorte de apenas ter cortado o joelho, que ele não sabia manusear o facão adequadamente, que tinha de esperar meu pai chegar para pegar milho, blá, blá, blá... Entrei correndo em casa e vi meu irmão com a perna enfaixada. Devem ter dado uns doze pontos no joelho dele. Foi um corte e tanto. Ele errou, quando tentou cortar uma espiga de milho, e acertou direto o seu joelho esquerdo.
Quanto à minha primeira promessa, também foi a primeira a não ser cumprida. Se Deus era tão meu amigo assim, a ponto de salvar meu irmão por eu lhe ter pedido isso, continuaria sendo meu amigo e permitiria que eu mantivesse meu pequeno vício. Assim, com a anuência de Deus, continuei com as chupetas até os seis anos de idade.