Fonte: Orfeu Spam 14 – Jornal eletrônico de poesias e artes –
Editor: Jairo Luna - http://www.jayrus.art.br/index14.html
De
Gil Vicente (1465?-1536?) pouco se sabe em concreto. Desconhece-se o
local e a data exactos do nascimento e morte. Alguns documentos dão-no como,
além de dramaturgo, ourives. Sabe-se, todavia, que no dia 8 de Junho de 1502
representou um monólogo à rainha D. Maria. É provável que tenha nascido na
província (Guimarães), cedo se fixando em Lisboa. Na capital, a sua principal
ocupação parece ter sido a de escrever e representar autos nas cortes do rei D.
Manuel e do rei D. João III. É considerado o pai do teatro português. De 1502 a
1536, Gil Vicente produziu mais de quarenta peças de teatro, chegando a
publicar em vida algumas delas. Colaborou no “Cancioneiro Geral”, de Garcia de Resende.
No entanto, só em 1562 é que o seu filho Luís Vicente publicou toda a sua obra
com o título “Compilaçam de todalas obras de Gil Vicente”, a qual se reparte em
cinco livros. Da compilação, destacam-se as peças mais conhecidas: Auto da
Índia (1509), Exortação da Guerra (1513), Quem Tem Farelos? (1515), Auto da
Barca do Inferno (1517), Auto da Fama (1521), Farsa de Inês Pereira (1523),
Auto da Feira (1528) e Floresta de Enganos (1536).
Auto da Barca do Inferno - Gil
Vicente
Definição
de auto: designação
genérica para peças cuja finalidade é tanto divertir quanto instruir; seus
temas, podendo ser religiosos ou profanos, ‘sérios ou cômicos, devem, no
entanto, guardar um profundo sentido moralizador.
O teatro vicentino não foi escrito
em prosa, mas em versos. Por isso é poético. Adotava, predominantemente, o
verso redondilho (maior ou menor), de origem popular e medieval. Possui muitas
ressonâncias no Brasil, dentre os quais se destacam as peças didáticas de José
de Anchieta (segunda metade do século XVI), Morte e Vida Severina (1956), de
João Cabral de Melo Neto, e o Auto da Compadecida (1959), de Ariano Suassuna.
Pequeno
resumo
Auto da Barca do Inferno é um auto
onde o barqueiro do inferno e o do céu esperam à margem os condenados e os
agraciados. Os que morrem chegam e são acusados pelo Diabo e pelo Anjo, mas
apenas o Anjo absolve.
O primeiro a chegar é um Fidalgo, em
seguida um agiota, um Parvo (bobo), um sapateiro, um frade, uma cafetina, um
judeu, um juiz, um promotor, um enforcado e quatro cavaleiros. Um a um eles
aproximam-se do Diabo, carregando o que na vida lhes pesou. Perguntam para onde
vai a barca; ao saber que vai para o inferno ficam horrorizados e se dizem
merecedores do Céu. Aproximam-se então do Anjo que os condena ao inferno por
seus pecados.
O fidalgo, o onzeneiro (agiota), o sapateiro,
o frade (e sua amante), a alcoviteira Brísida Vaz (cafetina e bruxa), o judeu,
o corregedor (juiz), o procurador (promotor) e o enforcado são todos condenados
ao inferno por seus pecados, que achavam pouco ou compensados por visitas a
Igreja e esmolas. Apenas o parvo é absolvido pelo Anjo. Os cavaleiros sequer
são acusados, pois deram a vida pela Igreja.
O texto do Auto é escrito em versos
rimados, fundindo poesia e teatro, fazendo que o texto, cheio de ironia,
trocadilhos, metáforas e ritmo, flua naturalmente. Faz parte da trilogia dos
Autos da Barca (do Inferno, do Purgatório, do Céu).
Características:
Estilo: obra escrita em redondilha
maior (sete sílabas poéticas), em tom coloquial e com intenção marcadamente
doutrinária, fundindo em algumas passagens o português, o latim e o espanhol.
Cada personagem apresenta, através da fala, traços que denunciam sua condição
social.
Estrutura: peça teatral em um único ato,
subdividido em cenas marcadas pelos diálogos que o Anjo ou o Diabo travam com
os personagens.
Cenário: um ancoradouro, no qual estão
atracadas duas barcas. Todos os mortos, necessariamente, têm de passar por esta
paragem, sendo julgados e condenados ou à barca da Glória ou à barca do Inferno.
Personagens
Fidalgo:
representa a nobreza, que chega com um pajem, uma roupagem exagerada e uma
cadeira de espaldar, elementos característicos de seu status social. O diabo alega
que o Fidalgo o acompanhará por ter tido uma vida de luxúria e de pecados. Ao
Fidalgo, nada lhe valem as “compras” de indulgências ou orações encomendadas. A
crítica à nobreza é centrada nos dois principais defeitos humanos: o orgulho e
a prática da tirania.
Onzeneiro: o
segundo personagem a ser inquirido é o Onzeneiro (agiota), usuário que ao
chegar à barca do Diabo descobre que seu rico dinheiro ficara em terra.
Utilizando o pretexto de ir buscar o dinheiro, tenta convencer o Diabo a
deixá-lo retornar, mas acaba cedendo às exigências do julgamento.
Parvo: um dos poucos a não ser
condenado ao Inferno. O Parvo chega desprovido de tudo, é simples, sem malícia
e consegue driblar o Diabo, e até injuriá-lo. Ao passar pela barca do Anjo, diz
ser ninguém. Por sua humildade e por seus verdadeiros valores, é conduzido ao
Paraíso.
Sapateiro:
representante dos mestres de ofício, que chega à embarcação do Diabo carregando
seu instrumento de trabalho, o avental e as formas. Engana na vida e procura
enganar o Diabo, que espertamente não se deixa levar por seus artifícios.
Frade: como todos os representantes do
clero, focalizados por Gil Vicente, o Frade é alegre, cantante, bom dançarino e
mau-caráter. Acompanhado de sua amante, o Frade acredita que por ter rezado e
estar a serviço da fé, deveria ser perdoado de seus pecados mundanos, mas
contra suas expectativas, é condenado ao fogo do inferno. Deve-se destacar que
Gil Vicente desfecha ardorosa crítica ao clero, acreditando-o incapaz de pregar
as três coisas mais simples: a paz, a verdade e a fé.
Brísida Vaz: misto de
alcoviteira e feiticeira. Por sua devassidão e falta de escrúpulos, é
condenada. Personagem interessante que faz o público leitor conhecer a
qualidade moral de outros personagens que com ela se relacionaram.
Judeu: entra acompanhado de seu bode.
Deplorado por todos, até mesmo pelo Diabo que quase se recusa a levá-lo, é
igualmente condenado, inclusive por não seguir os preceitos religiosos da fé
cristã. Bom lembrar que, durante o reinado de D. Manuel, houve uma perseguição
aos judeus visando à sua expulsão do território português; alguns se foram,
carregando grandes fortunas; outros converteram-se ao cristianismo, sendo
tachados de cristãos novos.
Corregedor e Procurador: ambos representantes do judiciário. Juiz e
advogado, deviam ser exemplos de bom comportamento e acabam sendo condenados
justamente por serem tão imorais quanto os mais imorais dos mortais,
manipulando a justiça de acordo com as propinas recebidas.
Enforcado: chega ao
batel, acredita ter o perdão garantido: seu julgamento terreno e posterior
condenação à morte o teriam redimido de seus pecados, mas é condenado também a
ir para o Inferno.
Cavaleiros:
finalmente chegam à barca quatro cavaleiros cruzados, que lutam pelo triunfo da
fé cristã e morrem em poder dos mouros. Obviamente, com uma ficha impecável,
serão todos julgados e perdoados.
Cada um
dos personagens focalizados adentram a morte com seus instrumentos terrenos,
são venais, inconscientes e por causa de seus pecados não atingem a Glória, a
salvação eterna. Destaque deve ser feito à figura do Diabo, personagem vigorosa
que conhece a arte de persuadir, é ágil no ataque, zomba, retruca, argumenta e
penetra nas consciências humanas. Ao Diabo cabe denunciar os vícios e as
fraquezas, sendo o personagem mais importante na crítica que Gil Vicente tece
de sua época.
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