sábado, 12 de março de 2011

Intertexto

Esses dias li uma entrevista de Luiz Antonio de Assis Brasil, que comanda a Oficina de Escrita Criativa há 25 anos na PUC do Rio Grande do Sul, onde é Secretário de Cultura. Diz ele que a única forma de começar a escrever literatura é copiando o estilo de algum autor já consagrado: começa-se imitando o autor, depois, encontra-se o próprio caminho e estilo. Essa imitação, na teoria literária, tem nome: intertexto. Segundo o dicionário Houaiss, intertexto é o “texto literário preexistente a outro texto e que é aproveitado, por absorção e transformação, na elaboração deste, ou que o influencia”.

Quando eu era jovem, as composições de Zé Ramalho eram o intertexto de minhas poesias: “Acho que os anos / irão se passar / Com aquela certeza / Que teremos no olho / Novamente a ideia / De sairmos do poço / Da garganta do fosso / Na voz de um cantador”. Fui muito influenciado por suas palavras durante vários anos. Depois, já adulto, tive outros intertextos: as poesias de Carlos Drummond de Andrade, de Cecília Meireles, de T. S. Eliot, de Fernando Pessoa, entre outros.

Acredito que todos que se arriscam a escrever, seja em prosa ou em versos, têm seus intertextos. É lógico que quem lê bastante, absorve as ideias dos textos lidos e, posteriormente, as transforma em ideias próprias. É como quando se lê uma notícia no jornal: quem a lê, absorve o teor dela. Mais tarde, ao comentar a notícia com alguém, aproveita algumas ideias do texto lido, transforma outras em ideias originais e produz o seu próprio texto, oral, adicionando, inclusive, opiniões que não constavam do texto lido. Isso é até natural. Também o é na literatura, nas artes plásticas, nas músicas, no teatro, nos textos jornalísticos, na vida em geral.

Por isso é importante a leitura. Por isso os adultos devem incentivar os jovens à leitura. Quem lê bastante e atentamente, pensa melhor e tem mais opção de opinião. Os intertextos ajudam a meditar no que se há de fazer, ajudam a refletir sobre a vida, a ponderar mais. Os jovens, desde o Fundamental I até a universidade, precisam aprender a produzir textos, sejam mentais, orais ou por escrito. Quanto maior o número de intertextos, mais facilidade eles terão para elaborar suas próprias produções, pois maior será a quantidade de influências que eles terão; maior, então, será o aproveitamento e a absorção.

Na maioria dos casos a influência é imperceptível. Pode-se notar uma semelhança de estilos entre os autores ou os textos, um certo ar de parecença, uma sensação de déjà vu (expressão francesa, cujo significado é ‘sensação de já ter visto ou presenciado algo que se está vendo ou presenciando pela primeira vez’). Muitas vezes, porém, a influência é percebida facilmente: basta ler o texto que já vem o intertexto à mente.

Um exemplo bastante famoso de influência é poema de Casimiro de Abreu, escrito em Lisboa, em 1857, cujo intertexto é o de Gonçalves Dias, escrito em Coimbra, em 1843. Ambos têm o mesmo nome: Canção do Exílio. Gonçalves Dias escreveu o seguinte: “Minha terra tem palmeiras, / Onde canta o sabiá; / As aves que aqui gorjeiam, / Não gorjeiam como lá (...) Minha terra tem primores, / Que tais não encontro eu cá; / Em cismar – sozinho, à noite / Mais prazer encontro eu lá”. Casimiro de Abreu, isto: “Se eu tenho de morrer na flor dos anos, / Meu Deus! não seja já; / Eu quero ouvir na laranjeira, à tarde, / Cantar o sabiá! (...) O país estrangeiro mais belezas / Do que a pátria, não tem”. Não há como ler este sem se lembrar daquele. Um intertexto do outro.

Esse exemplo apresentado denota o que chamamos na teoria literária de paráfrase, que é o desenvolvimento de um texto a partir de outro, conservando-se as ideias originais deste. Há, porém, outro tipo de influência, de aproveitamento, cujo autor intenciona não somente desenvolver o seu texto, conservando as mesmas ideias de outrem, mas aplicar um tom jocoso, engraçado. A sua intenção é provocar o riso, é ser irônico, sarcástico às vezes. Dá-se o nome a isso de paródia.

Um dos grandes parodiadores que houve em nossa literatura, no início do séc. XX, foi Alexandre Ribeiro Marcondes Machado, que usava o pseudônimo de Juó Bananere. Ele escrevia em jornais da época, usando um verdadeiro dialeto ítalo-paulista, denominado de português macarrônico. Recriava as mais famosas poesias brasileiras da época, ironizando os costumes e a política brasileira. Talvez a mais famosa seja a paródia de “Lembranças de morrer”, de Álvares de Azevedo, que tem os seguintes versos: “Eu deixo a vida como deixa o tédio do deserto o poento caminheiro – Como as horas de um longo pesadelo, que se desfaz ao dobre de um sineiro”. Bananere escreveu assim: “io dexo o vita come um tirburero, chi dexa as ruas sê cavá frigueiz; come um pobri d’um indisgraziato, chi giá ando na Centrale arguna veiz (...) só levo una sodade unicamente: é du chopigno lá du Bar Baró”. ('tirburero'é tilbureiro, o mesmo que cocheiro)

Isto também é importante aos jovens: aprender a brincar um pouco com as coisas ‘sérias’. Parodiar a sisudez da vida é interessante até para se desestressar um pouco. Tente você também.

2 comentários:

Derê disse...

Boa noite, Professor!

Enquanto lia a sua postagem, lembrei-me do primeiro ano do curso de Letras, quando a professora de Teoria Literária propôs a leitura de uma obra do Affonso Romano de Sant’Anna, cujo título é "Paródia, Paráfrase e Cia”.

Intertexto é um daqueles assuntos fascinantes e, de minha parte, assumo o quanto “aproprio-me” de diversas singularidades literárias a fim de compor (ou, pelo menos, tentar) a minha própria.

Em comum com o senhor, fora também gostar bastante das composições do Zé Ramalho, há anos venho “dialogando” com textos inspirados (e que muito me inspiram!) do Drummond e do Fernando Pessoa – ainda que assim o faça na forma de muitos “monólogos” (risos).

Uma coisa, porém, professor, fez com que eu retomasse uma consideração feita de tempos em tempos, sobre a qual até cheguei a escrever algumas semanas atrás. Entendo que a intertextualidade também esteja diretamente relacionada ao conhecimento literário do leitor, no sentido de que, quanto maior este conhecimento, igualmente maiores são as possibilidades de ele estabelecer relações entre os textos, fazendo analogias. Contudo, qual a sua opinião a respeito daqueles textos que “dialogam” entre si, numa evidente intertextualidade, mas escritos por autores que não se conhecem uns aos outros?... Como se explica a produção daquele autor que escreve algo recém-publicado (ou, por que não, publicado muito antes), amplamente conhecido em determinada parte do mundo, mas ao qual ele não teve acesso e a que ele é completamente alheio do outro lado onde se encontra, sendo que esta sua produção parece “conversar” com aquela, como se dela tivesse mesmo se “apropriado”?...

Sua postagem é perfeita, assim como os exemplos dados, Professor. No entanto, gostaria também de saber a sua opinião sobre aquilo que podemos considerar “intertextos” e que, embora a “sintonia” entre eles, não são elaborações que originalmente encontram correspondência entre si.

Para casos assim, eu – que não sou psicóloga nem nada do gênero – cheguei a cogitar a teoria do “inconsciente coletivo” (risos). E o senhor?
Bem, Professor, encerro este meu longo comentário deixando à disposição o link para o texto no qual consta essa minha despretensiosa “cogitação”, ansiosa por ler a sua resposta tão breve quanto possível – http://iaramolaescritora.blogspot.com/2011/01/entre-sombras-e-ideias.html.

Um abraço e parabéns pelo blogue!

Iara Mola
Redatora/Revisora
http://iaramolaescritora.blogspot.com
http://formaescrita.blogspot.com

anaflávia disse...

Parabéns pelo texto, aliás, um belo estudo de introdução aos pressupostos da literatura.